Artigo de Gabriela Costa Chaves e Amanda Mey* publicado no Jornal Folha de São Paulo de 26/11/2010
A política de comércio da Comissão Europeia está afetando drasticamente o preço dos medicamentos por situações de monopólio
A Comissão Europeia (CE) está propondo ao mundo uma agenda comercial com graves consequências para o acesso a medicamentos.
A estratégia é baseada principalmente nos tratados de livre comércio com países em desenvolvimento. Nesta semana, é a vez de os governos do Mercosul se sentarem à mesa de negociações.
Iniciadas em 1999, as rodadas com o Mercosul foram travadas cinco anos depois e retomadas neste ano para debater temas que abrangem de propriedade intelectual (PI) a agricultura, incluindo compras públicas e outros.
A mira da CE também está direcionada para países em desenvolvimento como a Índia, onde negociações ainda em curso podem afetar o acesso a medicamentos no mundo.
Organizações como Médicos sem Fronteiras têm acompanhado as negociações do tratado de livre comércio entre União Europeia (UE) e Índia, a chamada "farmácia do mundo em desenvolvimento".
Artigo recente evidenciou que 80% dos medicamentos adquiridos para Aids entre 2003 e 2008, para 115 países de rendas média e baixa, eram de fornecedores genéricos indianos. Atualmente, Médicos sem Fronteiras trata cerca de 160 mil pacientes com antirretrovirais, em mais de 30 países, com versões feitas na Índia.
Com um número crescente de pessoas precisando de tratamento e cada vez mais obstáculos para obtê-lo, uma verdadeira bomba-relógio está prestes a explodir.
A resposta mundial à epidemia de Aids, baseada no uso de antirretrovirais, permitiu o tratamento de 5,25 milhões de pessoas, mas ainda há 10 milhões na lista de espera.
A crise econômica, no entanto, provocou um recuo no financiamento da saúde global. A tendência, com a política de comércio da CE, é piorar esse cenário, afetando drasticamente o preço dos medicamentos por situações de monopólio. Uma perfeita contradição, já que países europeus são doadores de iniciativas que fornecem acesso a antirretrovirais em países em desenvolvimento.
No tratado de livre comércio com a Índia, foram propostos dispositivos que representam novas barreiras para o acesso.
Se o principal acordo internacional que rege a PI -o acordo Trips da OMC- prevê flexibilidades que facilitam a entrada de medicamentos genéricos a preços acessíveis, os tratados de livre comércio buscam justamente o contrário e fortalecem o monopólio com exigências que vão além desse acordo.
Cláusulas de exclusividade de dados da prova (referentes a resultados de ensaios clínicos) são preocupantes, pois dificultam a oferta de medicamentos genéricos, mesmo quando não há patente.
O argumento de combate aos medicamentos falsificados, por sua vez, tornou-se justificativa infundada para impor medidas de fronteira que afetam o trânsito de medicamentos legítimos e de qualidade.
Por essa razão, milhares de pessoas escreveram ao comissário de comércio europeu, Karl de Gutch, pedindo que reveja a política de comércio da região, principalmente quanto ao acesso a medicamentos.
A iniciativa faz parte de uma campanha de Médicos sem Fronteiras, chamada "Europa, tire as mãos de nossos medicamentos".
Assim, o alerta que fica é que o Brasil pode ser o freio da CE em suas aspirações quanto ao Mercosul. Com o precedente de implementação do acesso universal ao tratamento de HIV/Aids, os desafios para sustentar essa política já são vivenciados no Brasil e antecipam o futuro de outros países.
As posições de proteção à saúde pública diante da PI refletem resistência às ofensivas ao acesso a medicamentos essenciais. O Brasil tem um papel-chave no desarmamento da bomba-relógio que ameaça o acesso a tratamento.
* GABRIELA COSTA CHAVES, farmacêutica, é coordenadora da campanha de acesso a medicamentos essenciais no Brasil da organização Médicos sem Fronteiras.
* AMANDA MEY, internacionalista, é assessora da campanha de acesso a medicamentos essenciais no Brasil de Médicos sem Fronteiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário